Literatura Portuguesa
(alguns exemplos)



Padre António Vieira

Sermão do Bom Ladrão (1655)

"É o que disse o outro pirata a Alexandre Magno. Navegava Alexandre em uma poderosa armada pelo mar Erythreu a conquistar a India; e, como fosse trazido à sua presença um pirata que por alli andava roubando os pescadores, reprehendeu-o muito Alexandre de andar em tão mau officio; porém elle, que não era medroso nem lerdo, respondeu assim: Basta, senhor, que eu, porque roubo em uma barca, sou ladrão, e vós, porque roubais em uma armada, sois imperador? Assim é. O roubar pouco é culpa, o roubar muito é grandeza: o roubar com pouco poder faz os piratas, o roubar com muito os Alexandres.

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Não são só ladrões, diz o santo, os que cortam bolsas, ou espreitam os que se vão banhar, para lhes colher a roupa; os ladrões que mais propria e dignamente merecem este título, são aquelles a quem os reis encommendam exercitos e legiões, ou o governo das provincias, ou a admnistração das cidades, os quaes já com manha, já com força, roubam e despojam os povos. Os outros ladrões roubam um homem, estes roubam cidades e reinos: os outros furtam debaixo do seu risco, estes sem temor nem perigo: os outros, se furtam, são enforcados, estes furtam e enforcam."


António José da Silva


Vida do Grande D. Quixote de La Mancha e do Gordo Sancho Pança (1733)

"Sabei primeiramente, que isto de Justiça é cousa pintada, e que tal mulher não ha no mundo, nem tem carne, nem sangue, como v. g. a senhora Dulcinéa del Toboso, nem mais, nem menos; porém como era necessario haver esta figura no mundo, para meter medo á gente grande, como o papão ás crianças, pintaram uma mulher vestida á tragica, porque toda a justiça acaba em tragedia; taparam-lhe os olhos, porque dizem, que era vesga, e que metia um olho por outro; e como a Justiça havia de sahir direita, para não se lhe enxergar esta falta, lhe cubriram depressa os olhos. A espada na mão significa que tudo ha de levar a espada, que é o mesmo, que a torto, e a direito. Os doutores, que fallam nesta matéria, não declaram se era espada colobrina, loba ou de soliga; mas eu de mim para mim entendo, que desta espada a folha era de papel, os terços de infantaria, os cópos de vidro, a maçã de craveiro, e o punho secco: na outra mão tinha uma balança de dous fundos de melancia, como a dos rapazes: não tem fiel nem fiador; mas com tudo dá boa conta de si, porque esta moça, se não tem quem a desencaminhe é mui sisuda."

Fialho de Almeida
Os Gatos (1892)

"Com os homens sucede o mesmo que os toiros no trasteio. Há um momento em que eles ficam cegos, surdos, patetas, deslumbrados. Pode-se-lhes dizer seja o que for, porque a impressão é igualmente fulminante. Um marido caindo em casa sobre o espectáculo da mulher mai-lo amante. Vem a alucinação do revólver, o desgraçado vai esmigalhar a cabeça ao felizão... Vai este berra-lhe:

-Cautela que assassinas o pai de teus filhos!

Ora, sob a influência hipnótica desta frase, noventa e nove vezes por cem, o pobre diabo deixa cair o revólver e começa a gritar:

-Meu Deus, que ia eu fazer!

Porque aquela coisa do pai de seus filhos acaba de lhe esmiolar a cabeça perturbada, e na atrapalhação já não reflecte se o pai é ele, se o pai é o outro, ou mesmo se o verdadeiro marido foi, alguma vez, algum dos dois."

Carlos de Oliveira

Vilancete Castelhano de Gil Vicente (1950)

"Por mais que nos doa a vida
nunca se perca a esperança;
a falta de confiança
só da morte é conhecida.
Se a lágrimas for cumprida
a sorte, sentindo-a bem,
vereis que todo o mal vem
achar remédio na vida.
E pois que outro preço tem
depois do mal a bonança,
nunca se perca a esperança
enquanto a morte não vem"